domingo, 30 de março de 2014

Alfabetização digital: desafios e perspectivas para um mundo em transformação

Eben Upton, Rob Mullins, Jack Lang e Alan Mycroft, pesquisadores do Laboratório de Computação da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, estavam preocupados com o declínio que presenciavam ano a ano no número e na qualidade das habilidades computacionais dos alunos que ingressavam para o primeiro ano do curso de Ciência da Computação. Desde os anos 90, quando a maioria dos ingressantes já chegava sabendo programação por hobby, o cenário a partir dos anos 2000 começou a ficar bem diferente, com o calouro típico tendo apenas alguma experiência em web design.

Para eles, alguma coisa havia mudado a forma como as crianças interagiam com os computadores. Alguns problemas foram identificados: a propagação de lições sobre como usar Word, Excel e a criação de páginas web nos currículos das aulas de informática do ensino básico, o fim da bolha ponto-com, a ascensão dos computadores pessoais e dos consoles de videogame que substituíram as máquinas Amigas, BBC Micros, Spectrum ZX e Commodore 64, nas quais a geração anterior havia aprendido a programar.

Com o diagnóstico feito, havia pouca coisa que esse pequeno grupo de pesquisadores pudesse fazer para resolver o problema de um currículo inadequado nas escolas ou do fim da bolha financeira. Mas eles acharam que poderiam agir em relação ao fato de os computadores terem se tornado tão caros e obscuros, a ponto de os pais chegarem a proibir “experiências” com programação neles. Tentaram então encontrar uma plataforma que, da mesma forma como faziam aqueles computadores antigos, permitisse um ambiente de programação para experimentações com linguagens de programação e que os jovens se divertissem ao mesmo tempo?



Casos e projeto

Talvez você nunca tenha ouvido a história acima, mas muito provavelmente já ouviu falar do resultado prático que toda essa experiência resultou: trata-se das motivações por trás do Raspberry Pi, o computador de 35 dólares que anda revolucionando o mundo.

Agora, caso você ainda não tenha ideia do que é o Raspberry Pi, então isso só vem confirmar aquilo que eu vou dizer a seguir: estamos perdendo a oportunidade de educar nossas crianças e de estar entre os países que liderarão a próxima geração mundial.

Lá fora, há uma infinidade de projetos destinados a facilitar os primeiros passos dos jovens no universo mágico da programação, universo este onde seres humanos são capazes de “dobrar” os computadores, essas máquinas capazes de feitos maravilhosos, ao sabor de sua própria vontade.

O Media Lab do MIT (Massachusetts Institute of Technology), um dos departamentos de pesquisa mais respeitados de uma das instituições mais reconhecidas da área, já dedicou alguns projetos nesse sentido. É de lá que se originou uma das tentativas mais audaciosas no sentido de levar o conhecimento tecnológico às crianças, principalmente àquelas do terceiro mundo, que possuem proporcionalmente menos acesso à tecnologia do que as que se encontram em países desenvolvidos: o OLPC (ou One Laptop Per Child) teve início em 2005 com o objetivo de criar um laptop de 100 dólares, e crianças sem acesso algum a computadores poderiam ter o seu primeiro contato com a tecnologia.

É de lá também que veio o Scratch, linguagem de programação especialmente desenvolvida para crianças, mas, que ao contrário do Logo e de outras linguagens que a antecederam, tornou fácil a compreensão da lógica computacional e de outros fundamentos essenciais de programação sem que os pequenos tenham que se preocupar com detalhes tão comuns em outras linguagens como o uso de chaves, colchetes e pontos e vírgulas.

Computadores nas escolas e universidades

A introdução dos computadores como ferramentas de auxílio ao ensino se deu nas escolas públicas dos EUA ainda em meados dos anos 70, ganhando maior força na década seguinte. Aqui, o ensino de computação nos currículos escolares ainda engatinha e, quando já existe, reproduz a mesma lógica do aprendizado de Word, Excel e jogos (quando muito, jogos educacionais), coisas que as crianças de hoje aprendem sozinhas em casa.

Artigo fac-símile de jornal americano de janeiro de 197, relatando o uso de computadores como ferramentas de ensino em escolas públicas. Veja em http://bit.ly/1ipVRMj
 Se antigamente o computador era encarado como uma simples ferramenta de auxílio à aprendizagem, hoje já é possível ver valor no ensino da própria ferramenta computacional em si, através da introdução de alguma linguagem de programação, permitindo uma melhor compreensão do funcionamento da máquina e o exercício do gosto pela resolução de problemas.

Uma simples busca por livros sobre o tema em lojas online estrangeiras e brasileiras ou por artigos acadêmicos evidencia o enorme abismo que está se abrindo entre os países que estão adaptando seus sistemas educacionais para acompanhar as recentes mudanças ocasionadas pelo advento das tecnologias digitais e aqueles que ainda carregam o fardo de erros anteriores, como parece ser o nosso caso. Lá fora, é fácil ver a proliferação de livros sobre programação para crianças ou mesmo de teses que abordam a importância e as metodologias para a introdução do ensino de programação para os mais jovens.

Por outro lado, a situação do ensino superior de tecnologia no Brasil não é muito diferente e reflete a falta de discussão acerca do tema. De um lado, temos o ensino superior privado meramente mercantilista e que tem como objetivo final a inclusão do aluno no mercado de trabalho. Dessa forma, essas instituições adotam de maneira “cega” as soluções empurradas pelas grandes empresas do setor, na esperança de que isso ofereça a seus alunos alguma vantagem competitiva quando formados.

No entanto, apesar da inserção profissional ser um objetivo louvável, ela deveria ter como foco a capacitação das novas gerações para conseguirem criar as novas tecnologias, impulsionando o desenvolvimento tecnológico do próprio país como um todo, e não pela nossa eficiência em nos tornarmos excelentes consumidores de uma tecnologia que não entendemos e que nos é fornecida.

Já nas universidades públicas o problema é outro: currículos obsoletos, instalações e laboratórios inadequados e professores desatualizados são a fórmula para alunos desestimulados, o que resulta em uma elevada taxa de evasão nos cursos de tecnologia, desperdiçando o dinheiro público que foi investido na formação desses alunos até o momento em que eles abandonam o curso.

O problema se agrava com o acesso às plataformas de ensino à distância de grandes universidades dos países desenvolvidos, como Coursera, EdX e Udacity, que permitem antever o quanto estamos longe do ideal. Essas instituições utilizam o enorme volume de dados gerado pelos milhares de estudantes que acessam o conteúdo online para aprimorar ainda mais suas técnicas e metodologias de aprendizagem. Da forma tradicional, através do ensino presencial, seriam necessárias décadas de alunos formados para se obter a mesma quantidade de dados.

Problemas e caminhos para o Brasil

O resultado de tudo isso no Brasil é que falta mão de obra no mercado. Aliás, o que gera ainda mais preocupação ao nos depararmos com esse panorama é que os desafios e as dificuldades estão se acumulando; precisamos dar conta das expectativas de inclusão digital e ensino de programação nas escolas, ao mesmo tempo em que não resolvemos por completo os erros do passado. Estamos, hoje, tentando incluir os computadores no ensino ao mesmo tempo em que poucas são as escolas que possuem uma biblioteca, por exemplo.

Sem falar na questão da língua inglesa. Ainda hoje o ensino do idioma é bastante deficiente nas escolas brasileiras, o que se torna um grande entrave para uma maior inserção do país nas comunidades, fóruns e comissões mundiais de padronização tecnológica.

Nesse contexto, debates ultrapassados, que já foram superados há muitos anos em outros países, como o medo de que os professores sejam substituídos por computadores, ainda ecoa nos corredores dos círculos educacionais brasileiros pelos simples fato de que não ultrapassamos totalmente as barreiras da etapa inicial de inclusão dos computadores no cotidiano dos ambientes educacionais. Falta uma política pública para o tema, e os poucos exemplos que podemos contabilizar constituem-se de iniciativas isoladas, cujo impacto é bastante localizado.

A situação passa a ser mais alarmante quando comparamos a evolução que outros países dos BRICs – Rússia, China e Índia, alcançaram nos últimos 20 anos. Mesmo na América Latina, parece que estamos atrás de nações como Chile, México e até mesmo a Argentina.

Não há fórmula mágica para solucionar os problemas aqui expostos, mas parece ser urgente e necessário que os setores organizados da sociedade passem a se preocupar com questões desse tipo, incorporando a discussão do tema ao seu cotidiano e exercendo pressão sobre os meios políticos para que, a partir de uma ação efetiva, políticas públicas bem definidas sejam aplicadas ao setor. Só assim poderemos ter alguma chance de evitar que o inevitável aconteça e nos tornemos obsoletos, como 386s em um mundo Quad-core.

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Programação para crianças de todas as idades

Programas Open Source

  • KidsRuby: aprenda a programar usando Ruby;
  • Scratch: Ferramenta desenvolvida para a criação de pequenas animações e jogos a partir de programação;
  • Etoys: ambiente de programação visual e multimídia baseado no Squeak.

Aprenda a fazer páginas na web

Tutoriais online

  • Hackety Hack: ambiente gratuito com o objetivo de tornar fácil o ensino de Ruby a iniciantes;
  • Codecademy: lições práticas de Python, Ruby, HTML, CSS e APIs.

Faça robôs e apenda um pouco de eletrônica

  • Arduino: para qualquer um interessado em criar de objetos à ambientes interativos.
Artigo publicado no portal iMasters: http://imasters.com.br/gerencia-de-ti/tendencias/alfabetizacao-digital-desafios-e-perspectivas-para-um-mundo-em-transformacao/

quinta-feira, 27 de março de 2014

Marco Civil da Internet: é preciso agir agora

O Marco Civil foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora é preciso a aprovação do texto no Senado, para que o projeto finalmente vá para sanção presidencial.

Abaixo, reproduzo um texto que escrevi para o portal iMaster sobre o assunto e que encontra-se disponível em: http://imasters.com.br/gerencia-de-ti/tendencias/marco-civil-da-internet-e-preciso-agir-agora/

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Pense e responda: você tem certeza, mas certeza mesmo, de que o atual marido da sua ex-mulher (que, por acaso, é um alto diretor da sua companhia telefônica) não acessa o seu histórico telefônico para saber com que frequência vocês ainda se falam? É muito provável que não. No entanto, tudo muda caso você tenha provas, ou mesmo fortes indícios, contra o atual marido da sua ex-mulher. Numa hipótese desse tipo, você teria plenas condições (e todo o direito) de processar, não apenas os indivíduos envolvidos, mas principalmente as empresas para a qual eles trabalham.

Empresas de telecomunicação possuem um grande poder, pois detêm a guarda de informações relativas à vida privada de toda uma sociedade. Por isso mesmo, o serviço prestado por elas é considerado de interesse público, o que submete esse mercado a um controle governamental mais rígido, afinal, trata-se de um serviço de fundamental importância. E elas possuem plenas condições técnicas de monitorar um indivíduo. No entanto, a Constituição Brasileira está do lado do cidadão, garantindo a ele o direito ao sigilo de sua vida privada. A lei garante que os dados que você cria ao utilizar os serviços dessas empresas , são seus, e não delas. O fato de você utilizar a infraestrutura das companhias para gerar esses dados não muda que os dados são sempre seus.

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E mais do que isso, essas empresas têm a obrigação de zelar pelos seus dados privados, podendo inclusive ser responsabilizadas caso permitam o vazamento de informações fora dos contextos previstos em lei: processos e investigações criminais mediante autorização judicial. Diante disso, sua empresa de telefonia pode ser processada caso permita que seu histórico telefônico vá parar nas mãos de terceiros sem autorização para isso.

Parece óbvio, mas nem sempre foi assim. Foi necessário muito tempo até que nossa sociedade chegasse a essas conclusões e o direito à privacidade se constituísse como fundamental. Basta lembrar que na idade média o senhor feudal – e mais tarde o rei – possuía autoridade sobre a vida pública e privada de seus servos, e que há pouco mais de 200 anos o Senhor de Terras agia da mesma forma com seus escravos. O direito à privacidade nasce, portanto, com o surgimento da República: a separação entre Estado e Sociedade resulta na separação entre vida pública e privada.

Apesar disso, os contornos de questões relativas à privacidade eram bem mais delineados no passado. Hoje, as fronteiras não são mais tão nítidas como costumavam ser . Até onde vai a privacidade alheia e tem início a vida pública? E, quando se trata da Internet, regras como as descritas até aqui parecem não ter a mesma validade. Na verdade, a lógica parece ser justamente o inverso.
Como não há leis que garantam a privacidade dos dados digitais dos indivíduos frente ao poder das corporações de Internet, estes se encontram totalmente desprotegidos a partir do momento em que aceitam termos de serviço “leoninos”, ou seja, desiguais, que garantem todo o poder para o fornecedor do serviço e nenhuma garantia para quem os utiliza.

É exatamente o que fazem empresas como Google, Facebook, Microsoft e Apple: ao aceitar os termos de serviço e privacidade, sem os quais não é possível fazer uso de Gmail, Facebook, Skype ou iCloud, o cidadão expõem sua vida privada ao poder desproporcional dessas corporações. Com isso elas podem utilizar todo o conhecimento gerado sobre você de maneira quase que indiscriminada. Não importa se elas usam os seus dados simplesmente para vender produtos que você supostamente precisa ou para espionar a sua vida pessoal e profissional. O problema é que se trata unicamente de muito poder nas mãos de uma “pessoa” só. É preciso, no mínimo, equilibrar essa balança.

Atualmente, estamos numa encruzilhada: não podemos mais prescindir dos serviços online que usufruímos, ao mesmo tempo em que deliberadamente entregamos nossos dados a essas empresas (e outras), inconscientes do potencial perigo que isso representa.

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O problema se agrava quando o Estado, que supostamente deveria proteger o cidadão de interesses contrários ao público, acaba se aproveitando de todo esse poder de concentração de dados para também ter acesso a eles, facilitando, assim, seu controle sobre a sociedade. A divulgação da existência do PRISM (o programa de espionagem digital do governo americano) confirma que este tipo de ação vai muito além da “simples” espionagem política, passando inclusive por interesses comerciais.

Indivíduos, e principalmente empresas, deveriam redobrar a atenção antes de decidirem fazer uso de serviços de nuvens públicas, pois tudo aquilo que parecia ser teoria da conspiração confirmou-se graças ao ato de Edward Snowden. Se não fosse por ele, provavelmente ainda estaríamos alheios a tudo o que foi revelado.

A solução, nesse caso, seria a aprovação de leis que ampliem o direto dos individuais para o campo das redes digitais. O projeto de lei do Marco Civil da Internet, em tramitação na Câmara há mais de dois anos, é um primeiro passo nesse sentido.

Além disso, é preciso ficar atento para que o projeto, que nasceu de uma iniciativa popular, não seja descaracterizado, perdendo assim sua função. Hoje, uma alteração no texto original já permite que conteúdo seja retirado da rede sem a necessidade de decisão judicial. Essa é uma mudança inadmissível porque dá margem a “acusações vazias”, que têm intuito apenas de retirar conteúdo que possa desagradar a determinados grupos sociais, como detentores de direitos autorais.

Outro ponto polêmico é a garantia de neutralidade da rede. Ela determina que provedores de infraestrutura não podem ter controle sobre o conteúdo que passa por essa infraestrutura. Se essa garantia cair, provedores poderão filtrar os pacotes de dados para criar planos diferenciados de acesso de acordo com o conteúdo que você quer consumir. Nesse caso, não importará mais quantos “mega” tem o seu plano de acesso à Internet, você ainda assim terá que pagar custos adicionais para poder fazer uso de serviços como VoIP ou streaming de vídeo de forma minimamente decente.

Como se pode ver, os únicos a ganhar com essa decisão são as grandes corporações de telecomunicação, pois elas poderão aumentar suas margens de lucro sem que para isso seja necessário aumentar a sua infraestrutura ou incluir mais gente ao serviço. Tal decisão mudaria drasticamente o modelo de negócio vigente até agora, no qual a largura da banda determina o que você pode fazer na rede.

Por tudo que foi falado até aqui, é importante que elevemos a consciência da população em geral em relação à importância do tema, aumentando assim a pressão popular pela aprovação integral do Marco Civil da Internet. Portanto, converse com seus amigos e familiares sobre o projeto, seja nas rodas de bar ou nas redes sociais.

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